A solução da violência passa pela conversão

A cena do pe. Kelder, sacerdote da arquidiocese de Vitória do Espírito Santo, celebrando missa no Domingo de Ramos, na rua, ao lado do corpo de uma pessoa assassinada, ainda uma vez chama a atenção de todo mundo em relação ao fenômeno da violência. Cresce a cada dia o número de pessoas que sofrem algum tipo de agressão. Os cidadãos têm medo de sair.  As residências transformaram-se em fortalezas. O povo prefere ficar trancado dentro de casa, mas nem no lar, outrora sagrado, a violência dá trégua.  Entre as quatro paredes consumam-se abusos e agressões que beiram a bestialidade.

O pânico está tomando conta de todo mundo. O pior de tudo é que a violência contagia. É curto o caminho que leva a vítima a se tornar carrasco. Com a sensação de abandono por parte das autoridades, o povo tenta se proteger de qualquer forma. Algumas pessoas, sedentas por reparação, fazem justiça com suas próprias mãos. A barbárie está tomando conta das ruas. São numerosos os casos de linchamento.

As instituições estão perdidas. As iniciativas de enfrentamento são violentas tanto quanto a violência que se pretende encarar. Na área da segurança pública prevalece a linguagem bélica. Fala-se de “combate”, de “invasão e ocupação de comunidades”. Utilizam-se equipamentos de guerra. Até o exército está sendo utilizado para combater o narcotráfico. A população, no meio do fogo cruzado e alvo de balas perdidas, exige do poder executivo medidas mais enérgicas, pressiona o legislativo para que aprove leis mais rígidas e espera do judiciário a aplicação de penas mais duras. Há quem chegue a pedir a eliminação dos infratores. É a afirmação da linha dura vendida como a estratégia de sucesso no enfrentamento da violência.

E nós cristãos, onde ficamos em tudo isso? Qual é a nossa posição? Qual é o caminho que apontamos para vencer a sensação de impotência e dar início a um processo de mudança na linha da construção da cultura da paz?

Nos meus 25 anos de militância na Pastoral do Menor e na Pastoral Carcerária, com os olhos poluídos por inúmeras situações de brutalidade vivenciados na minha militância, acredito firmemente nos seguintes pontos:

1.            Não dá para se render à lógica da violência. Como já escrevi em outras oportunidades, a pior violência que podemos sofrer é permitir que assassinem a nossa esperança. Por quanto seja difícil o momento que estamos vivendo, não podemos nos dar por vencidos. Desistir de reagir com a desculpa que “não tem mais jeito” é assinar embaixo o atestado de rendição a quem quiser impor a lei do mais forte. A gravidade da situação pode se tornar uma grande oportunidade de reação. ‘Depois que Cisto morreu na cruz – escreve pe. Amedeo Cencini – toda situação, inclusive a mais frágil e trágica ou a aparentemente falimentar e maldita, pode tornar-se lugar e causa de salvação. Ou seja, se um crime horrendo foi o contexto histórico escolhido por Deus ou por meio do qual o Pai nos salvou, isso quer dizer que qualquer cenário histórico é ideal para se viver a própria história pessoal de salvação”. O cenário de violência dos nossos dias pode se tornar o palco onde podemos colocar em cena uma nova história pautada na paz e na solidariedade.

2.            Quem acredita que a violência tenha que ser combatida com métodos igualmente violentos arrisca entrar num beco sem saída. A simples repressão pode até conseguir conter a violência por algum tempo e difundir no ar a sensação de segurança, mas nunca obterá o fim dela. Serve só a mantê-la aparentemente sob controle até a próxima explosão que, pela quantidade de energia negativa acumulada, torna-se mais devastadora das anteriores.

3.            A única atitude capaz de derrotar a lógica da violência é a conversão. A humanidade está atolada num processo de desumanização. A constatação é dramática: o ser humano está deixando de ser humano. A saída de emergência é uma só: o resgate de sua humanidade. O ser humano só vencerá a violência quando redescobrir sua verdadeira identidade. A visão antropológica da Sagrada Escritura não deixa dúvidas: o homem e a mulher foram feitos a imagem e semelhança de Deus. E qual é o jeito de ser de Deus? Deus é amor, diz o apóstolo João. O ser humano, portanto, só voltará a ser genuinamente humano se vivenciar o amor do mesmo jeito de Deus. A violência que inferniza a nossa vida não é outra coisa a não ser o sintoma de uma outra luta mais radical onde estamos colocando em xeque o futuro da humanidade. “O ser humano – afirma o jesuíta pe. Alexander Paul Zatyrka Pacheco - é o campo de batalha de duas tendências opostas, uma rumo à humanização e outra à desumanização. E a experiência cristã monstra que somente quem se reencontra com sua vocação transcendente é capaz de sair vencedor desse conflito”.

O ser humano precisa se achar, se reencontrar com sua origem, se reconciliar com sua verdadeira imagem, redescobrir sua identidade.
Jesus veio para isso: para a humanidade espelhar-se nele e se achar nele. Ele é verdadeiro Deus. É o rosto do Pai. E é verdadeiro homem. É a figura autêntica do ser humano. Este deixará de ser violento quando levar a sério Jesus Cristo e entrar num processo de configuração com Ele até chegar ao ponto de exclamar com o apóstolo Paulo: “Não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

Pega muito mal saber que o Brasil, mesmo sendo o país no mundo com o maior número de cristãos, seja, ao mesmo tempo, um dos mais violentos do planeta Chegou a hora de descer o Cristo do Corcovado e acolhê-lo na nossa vida, plasmando-a conforme seu jeito de ser e viver.

Ao longo de toda a sua experiência terrena, Jesus mostrou, através do exercício da compaixão, da solidariedade e do perdão, o seu jeito todo peculiar de ser humano e divino. Mas o momento culminante da revelação da sua verdadeira identidade se deu, paradoxalmente, na cruz. Aquilo que aos olhos humanos parecia ser um fracasso, tornou-se a glória de Jesus. A cruz deu “consistência” à sua divindade e à sua humanidade. “O seu total esvaziar-se até dar tudo de si para nós nos revelou o que é plenamente humano. Trouxe à tona a imagem divina segundo a qual fomos criados. Cristo crucificado e ressuscitado nos manifestou, numa linguagem existencial acessível à nossa compreensão humana, o mistério de um Deus que é amor, como dom de si, que, paradoxalmente, quanto mais se doa tanto mais se transforma em vida” (pe. Alexander Paul Zatyrka Pacheco )

É a imagem desse Deus que nós fomos criados. Essa é a “figura” que nos é própria, o modelo com o qual somos chamados a nos “configurar”, a nossa identidade de pessoas. O mal nos desfigura porque nos propõe um dinamismo exatamente oposto ao Amor de Deus assim como se revela no Inocente pendurado na cruz. O engano do mal consiste fundamentalmente em nos separar uns dos outros. Ele nos convence que todos aqueles que estão ao nosso redor, inclusive Deus, são inimigos e rivais. Envenena completamente as pessoas fazendo com que elas passem a ver tudo com maldade. Obcecado pelo mal, o ser humano não se enxerga mais como criatura, mas como criador todo poderoso; não se vê mais como administrador da criação, mas como um dono absoluto de tudo; não se percebe mais como pessoa, ser em comunhão, mas como EGO, um indivíduo isolado em contínuo conflito com o que o cerca, pois tudo se torna uma ameaça. Ele passa a ver de maneira distorcida também o outro. Este não é mais um irmão, mas um rival, um inimigo. O próprio Deus passa a ser um antagonista ciumento que precisa ser eliminado.

O mal convence o ser humano que a única maneira para ter segurança nesse mundo inseguro é assumir posturas violentas.  Sob sua influência, no lugar de dar a vida aos outros, dedica-se a arrancá-la dos outros. De irmão solidário transforma-se em predador. Torna-se “contra-imagem” de Deus, Desfigura-se.

O Inocente plantado na cruz é um alerta. Se é verdade que a cruz é um abominável instrumento de tortura que tem que ser definitivamente abolido da face da terra, é também verdade que o Crucificado aponta que a única saída da violência é uma vida orientada pelo dinamismo do amor. Jesus fez de toda sua vida um dom de si. O Amor do qual fala o apóstolo Paulo no capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios, foi a marca registrada de suas ações. Esse mesmo amor deve ser a marca registrada também de nossa vida se quisermos sair definitivamente da espiral do ódio e da violência. O resto é papo furado.

Um forte abraço ao pe. Kelder, meu amigo, e a todos(as) os(as) teimosos(as) que não se dobram à cultura da morte.

Pe. Saverio Paolillo (pe. Xavier)
Missionário Comboniano

Pastoral do Menor e Carcerária

Fonte da foto: www.ipunoticias.net

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