A ditadura da bola

Alguns dias atrás inauguramos o campinho de futebol de Aguiarlândia, bairro da extrema periferia de Santa Rita, município da região metropolitana de João Pessoa, na Paraíba. Na realidade não tem tamanho de campo. Mais se parece com uma quadra. Era coberta por uma boa camada de areia preta. Depois da pelada precisava de um tempão debaixo do chuveiro para tirar a sujeira. O risco de pegar micoses e bicho de pé era muito grande. Decidimos gramá-lo. Ajudada pelas chuvas que caem copiosamente durante esse tempo do ano, a grama pegou rápido. Em poucos dias o campinho virou um tapete verde. O dia da inauguração foi uma festa. A garotada, ansiosa de pisar na grama, curtiu bastante. Literalmente deitou e se enrolou naquele tapete macio. Bastaram pouco mais de três mil reais para realizar esse sonho, possível graças à ajuda de amigos italianos.Com pouca coisa a garotada dessa pobre periferia nordestina ganhou uma razoável estrutura esportiva.

Em época de Copa, uma pergunta se impõe: quantos campinhos como esse teria sido possível aprontar com a dinheirama gasta para o Mundial de Futebol. Segundo dados oficias divulgados pelo próprio governo, até agora foram investidos mais de 25 bilhões de reais. Só para construir ou reformar os doze estádios foram gastos quase dez bilhões de reais. Conforme um estudo da empresa de consultoria KPMG, divulgado pelo jornal Estadão, o Brasil construiu os estádios mais caros do mundo. Dos vinte mais caros do mundo dez estão no Brasil. Sempre segundo a matéria do Estadão, o País gastou mais daquilo que foi gasto pela Alemanha e a África do Sul nas últimas duas edições da Copa do Mundo. Cada assento do Mané Garrincha de Brasília teria um custo aproximativo de quase 21 mil reais. Com o dinheiro de um assento dava para gramar sete campinhos como o nosso.

A propaganda oficial tenta explicar que todo esse investimento não é a fundo perdido, mas que vai gerar riquezas para o País. Na realidade quem vai sair ganhando vão ser as empresas que estão realizando as obras, parte da rede hoteleira e de serviços, os patrocinadores do evento e a própria FIFA. Além de conseguir mudar algumas legislações, como aquela que proibia a venda de bebidas alcóolicas nos estádios, a FIFA foi beneficiada pelo Governo com a isenção fiscal de pelo menos oito tipos de tributos sobre suas atividades. Graças a esses benefícios, a mais poderosa organização futebolística do mundo vai deixar de pagar mais de 500 milhões de reais. Cabe ressaltar que essa entidade não está realizando nenhuma atividade filantrópica. Segundo as últimas estimativas, a FIFA espera que o evento gere um faturamento de mais de 7 bilhões de reais. Isso é 600 milhões de dólares (R$ 1,2 bilhão) a mais do que a receita gerada na Copa de 2010, na África do Sul, e quase o triplo da receita da Copa de 2006, na Alemanha. Enquanto o povão fatura pouco ou nada, a FIFA e seus parceiros vão superfaturar.

Não sou contra o futebol. Mesmo sendo uma perna de pau, sempre incentivei as crianças, os adolescentes e os jovens à prática esportiva. Organizei centenas de campeonatos para ocupar a ociosidade da garotada da periferia com atividades sadias que, além de proporcionar o desenvolvimento físico, ajudassem a assimilar os valores da cidadania, do respeito pelas regras, da boa convivência e da tolerância. Considero o esporte, quando vivenciado com ética, um grande aliado no enfrentamento da cultura da violência. Mas fico decepcionado por aquilo que o futebol se tornou. Virou um negócio onde rola muito dinheiro. Muitos atletas não constituem uma boa referência para os nossos garotos. Mergulhados em dinheiro, levam uma vida sem regras. Mesmo com todas as manifestações de carinho para com seu próprio país, a principal preocupação deles foi o prêmio que deveriam ganhar caso cheguem a conquistar o título, como se não ganhassem já muito dinheiro. A própria Copa do Mundo não é mais uma atividade que promove o encontro, a troca saudável de experiências e uma convivência sadia entre as várias nações do mundo, mas se tornou um big business, uma grande operação financeira onde não faltam até supostas ações fraudulentas como tem denunciado várias vezes a imprensa a respeito de rumores sobre eventuais casos de corrupção que envolveriam cartolas para aprovar a sede das edições dos mundiais.

A impressão que fica é que o Brasil tenha entregue a soberania à Fifa. O País parece viver debaixo da ditadura da bola. Centenas de pessoas foram removidas de suas casas para dar espaço às obras da Copa. Um verdadeiro plano de guerra foi aprontado para garantir aos torcedores segurança total. Por vários dias nas ruas de Santa Rita, município onde resido, o exército tem realizado ensaios para a repressão de eventuais manifestações populares. Leis que criminalizam os movimentos populares foram aprovadas em tempo recorde. Quem se obstina a protestar poderá ser enquadrado como terrorista. Operações de “limpeza urbana” estão “varrendo” drogados e moradores de rua. Os turistas não podem correr riscos, mesmo se isso pode colocar em risco a vida dos mais pobres.

Eu prefiro o nosso campinho de Aguiarlândia e o futebol da nossa garotada de periferia. O nosso campo não tem padrão FIFA, mas tem o cheiro da solidariedade e o gostinho do direito conquistado. Nós demonstramos que basta pouco para garantir o direito ao esporte nas periferias. Com a dinheirama gasta para construir ou reformar os 12 estádios da Copa daria para construir um monte de estruturas esportivas para a meninada. Que pena que o princípio da “prioridade absoluta” garantido às crianças brasileiras pela Constituição Federal tenha sido cedido ao futebol. à Fifa e a seus patrocinadores. O dia que o Brasil fizer para nossas crianças o que fez para a Fifa e a Copa vai ter mais vida para os nossos pequenos, mas não menos importantes cidadãos brasileiros.

Benvindos à Copa e ao futebol quando vierem juntos com uma grande vontade de ajudar a construir cidadania e justiça.

Padre Saverio Paolillo (pe. Xavier)
Missionário Comboniano
Pastoral do Menor e Carcerária

Centro de Defesa dos Direito Humanos Dom Oscar Romero – CEDHOR.

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