O título deste texto corresponde ao tema
proposto pelo MPA (e acolhido de bom grado), na esteira de outras inquietações
pertinentes, como objeto de reflexão e ação pelos protagonistas do Movimento. Acolho
a proposta como um mote do Repente, e, a partir dele, cuido de propor um
roteiro de problematização e de provocação ao tema, com o propósito de suscitarpontos
que me parecem relevantes e oportunos, no atual cenário da sociedade
brasileira, em especial, de suas forças transformadoras das quais o MPA segue
buscando fazer parte, de modo crítico-propositivo.
Para qualquer movimento popular que se
preze, resulta vital a questão do método de organização, de formação e de
intervenção na realidade social, bem como na trajetória de seus membros. Por
isso mesmo, seu método não deve ser entendido como algo à parte de sua visão de
mundo, de suas referências teóricas. A isto buscarei estar atento, nas linhas
que seguem. Vou distribuir esta reflexão em três tópicos necessariamente
interconectados: rápidas considerações sobre alguns desafios da atualidade para
as forças de transformação social; que tipo de formação melhor corresponde ao
perfil das forças sociais, a exemplo do MPA, em sua luta por uma sociabilidade
alternativa à que aí está; e que tipo de método melhor se adequa ao trabalho de
base, nessa perspectiva.
1.
Alguns desafios
que rondam nossa atualidade
Não é segredo que, mais do que uma época
de mudança, estamos vivendo uma “mudança de época”, com profundas repercussões,
não apenas nas mais variadas esferas da realidade, como também comportando distintos
sentidos que a expressão pode implicar ou que podemos atribuir-lhe. Tal
fenômeno impacta, por certo, todo um modo de produção, de circulação, de
consumo, de gestão de sociedade e de convivência com a Mãe-Natureza. Suscita
profundos impactos decorrentes da reestruturação produtiva como da reorganização
dos processos de trabalho. Aqui recomendo vivamente o vídeo/documentário “da
servidão moderna”, acessível por Youtube). Tal “mudança de época” compromete
mortalmente, pelo menos em médio prazo, o lugar atribuído aos Estados
nacionais, durante séculos, como se fosse a única forma possível de se
organizar uma sociedade que se queira alternativa à ordem vigente. Por tabela,
afeta mortalmente a lógica da democracia representativa ou a objetiva abdicação
de protagonismo cidadão, com consequência direta na organização partidária
convencional, etc. Mas, sobretudo, aponta para a inarredável necessidade de se
reinventar o fazer-Política, inclusive por meio de uma dinâmica alternativa de
organização societária, alternativa à lógica do Mercado capitalista e do Estado.
E não apenas do Estado capitalista: os Estados socialistas, com raríssimas
exceções, têm dado sobejas provas de sua incapacidade de fazer a transição para
uma sociedade sem classes. Como dizia a famosa personagem do filme “Queimada”,
José Dolores, “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e
não saber para onde ir.”
Não se diga que isto seja devaneio.
Lembremo-nos do velho alerta, de que, fazendo jus e uso de sua condição de
inventividade, os seres humanos estão à altura dos desafios que lhes são
historicamente colocados. Basta que observemos as lições da História, em
distintas épocas. Por que abdicar de nossa vocação histórica à Liberdade, ainda
que tal projeto nunca se complete de todo satisfatoriamente? Aqui me vem o belo
poema de Eduardo Galeano sobre a linha do horizonte, que nos anima a seguir
caminhando.
Ousar o novo (no sentido do alternativo),
e já ensaiando passos concretos nessa direção, desde que impregnados de
sementes de alternatividade,constituitarefa irrenunciável do processo de
humanização, sobretudo quando se tem certeza da caducidade dos caminhos que
vimos trilhando, há tanto tempo. Até podemos não saber bem como chegar à
sociedade que almejamos, mas não nos resignamos a tentar, a ensaiar passos,
nessa direção, inclusive cometendo erros. Só acerta quem está disposto a
buscar, buscar e buscar, sempre, recolhendo lições dos próprios equívocos aos
quais não escapa quem ousa caminhar por caminhos ainda não trilhados...
Aqui me restrinjo especificamente ao
desafio do esforço de construção de uma nova sociabilidade, alternativa ao
Capitalismo, e que faça jus aos sonhos mais generosos da humanidade, em relação
amorosa com a Mãe-Natureza. Trato de sublinhar algumas tendências equivocadas,
mas que seguem amplamente hegemônicas, inclusive entre forças e organizações de
base de nossa sociedade, buscando aqui fazer com elas um contraponto, do ponto
de vista de quem aposta numa sociabilidade alternativa ao Capitalismo, mas, por
isso mesmo, a ser construída alternativamente, não apenas no que concerne ao
seu horizonte, mas também na práxis cotidiana dos seus protagonistas,
convencidos de que horizonte de Liberdade se alcança apenas por caminhos também
de Liberdade. Vejamos, então, algumas dessas teses equivocadas ainda amplamente
hegemônicas.
-Só
alcançamos uma nova sociedade, após a derrocada da sociedade presente -Em situação
ordinária, tal afirmativa não mereceria grande estranhamento. Com efeito, o advento
de uma nova sociabilidade é incompatível com o presente modelo de sociedade. Estamos
de acordo quanto à necessidade de superação do atual modelo de sociedade. Um
modelo alternativo comporta, portanto, o enfrentamento do tipo atual de
sociedade e a sua derrocada. Onde, então, aparece nossa crítica? No fato de
que, à falta de se trabalhar criativamente no desenho da nova sociedade, como
condição indispensável para a verdadeira superação da velha sociedade,
acaba-se, não raro, adiando o necessário esforço de visibilizar, já de agora, a
expressão de sinais concretos de alternatividade no estilo de vida dos
protagonistas. Ou seja: não vale tudo deixar para depois da derrocada do velho
regime, para, só a partir de então, cuidar-se de construir os novos valores, as
novas atitudes, compatíveis com a nova sociedade. Seria demasiado tarde! Esse
filme já vimos... Ou a busca de nos tornarmos - incessantemente e desde já –
novas mulheres e novos homens começa a ser visibilizada, a cada momento, por
atitudes compatíveis com a nova sociedade, ou em vão lutamos por uma nova
sociabilidade. São fartos os exemplos que bem ilustram, ao longo de décadas de
experiências de sociedades socialistas, que não conseguiram fazer a transição
para uma sociedade sem classes (e, portanto, sem Estado). E já não convence o
argumento de que isto não se deu, graças apenas a fatores externos, por mais
que reconheçamos o peso efetivo destes. Em outras palavras: em vão nos
entregamos à tarefa de derrubar a atual sociedade, sem que, ao mesmo tempo, nos
empenhemos, dia após dia, no esforço ininterrupto de nossa própria
transformação em novos homens, em novas mulheres.
-O
exercício crítico é a condição suficiente de formação da boa militância – Eis
outra importante afirmação que segue sendo requisito essencial: é inconcebível
pretender-se uma sociabilidade alternativa, preterindo-se a formação crítica
dos protagonistas. Por outro lado, tomada isoladamente, tal afirmação implica
reducionismo, sob vários aspectos. Os exemplos nos falam de modo mais
convincente. Quem de nós não conhece militantes intelectualmente bem dotados,
com admirável capacidade de desmontar as armadilhas do sistema capitalista.
Mas, quando se trata de investir em atitudes propositivas ou mesmo em saídas,
mostram suas fragilidades: são críticos mas não propositivos. Mais. Exercitar
com competência a crítica, sem o simultâneo e contínuo exercício da autocrítica
resulta comprometer – ou até negar – a qualidade da crítica. Exercitar a
crítica, com postura ética, implica, antes mesmo de lançar a crítica “ad
extra”, colocar-nos, primeiro, como alvo da referida crítica.
-Contra
não importa o quê, temos que defender os nossos incondicionalmente -
Aqui reside uma fonte relevante de reiterados e graves equívocos. Sucumbir a
uma postura de defesa incondicional, sob a alegação de que cumpre ser fiel aos
“nossos”, seja qual for a situação, implica um grave equívoco ético, que tem
provocado constantes estragos ético-políticos, em não poucos episódios
protagonizados por figuras do campo de esquerda. Para se defender “os nossos”,
em qualquer situação, vale tudo, tudo é permitido. Neste caso, a própria causa
revolucionária resulta preterida por tal postura. Acaba-se assegurando
fidelidade aos amigos, mesmo estes encontrando-se em situação eticamente
indefensável, e, por via de consequência, abandonando-se a própria causa
revolucionária, que tem na verdade sua cláusula pétrea: “Só a verdade é
revolucionária”.
-Uma
vez dirigente, sempre dirigente” – Por razões óbvias,
isto é posto em prática, mas pouco ou simplesmente não verbalizado. Pelo contrário,
até se ensaia “falar-se” em rodízio, mas de boca para fora. Na prática,
coordenadores/dirigentes de há dez, vinte anos ou mais seguem compondo a
direção, ainda que em cargos variados. Cria-se, com isto, objetivamente, uma
casta privilegiada, em nome do bom andamento do movimento... Um dirigente, se
já foi base algum dia, isto ficou para trás definitivamente, sob as mais
distintas alegações.
-A sobrevivência do nosso movimento passa pelo
recebimento de recursos de outras fontes –Na trajetória de um
movimento, pode haver situações excepcionais que o levem a apelar, sem jamais
comprometer sua autonomia, a fontes legitimamente aliadas, sempre com o
compromisso de, tão logo vencido esse período de exceção, retomar seu caminho
de autofinanciamento. É praticamente impossível a um movimento popular com
projeto alternativo de sociedade que seja capaz de assegurar sua autonomia, se
depende de outras fontes de financiamento. Pior ainda, quando essas fontes têm
a ver com o Mercado ou com o Estado. Sábio é o adágio popular: “Quem come do
meu pirão, prova do meu cinturão.” Na história de lutas dos movimentos sociais
com esse perfil, são incontáveis as experiências de aposta e zelo pela sua
autonomia, recorrendo a vários meios de caixa comum, com esse propósito.
-Só
se enfrenta a classe dominante com êxito pela via militar –
Ontem mais do que hoje, mesmo assim segue forte a aposta no argumento
militarista, mesmo já não enfrentando as condições, por exemplo, da ditadura
empresarial-militar. E por essa via, em vez de se priorizar todo um processo de
formação humanizadora, não raro, sucumbe-se ao apelo privilegiado às armas, à
luta armada, com a agravante da tendência frequente de confundir-se revolução
com luta armada, esvaziando-se o essencial do significado de Revolução.
Resultado: de posse das armas, os dirigentes, uma vez instalados em postos de
relevância, fazem prevalecer suas decisões, nem sempre pela força de seus
argumentos...
-Só
com formação política dos dirigentes, podemos assegurar um movimento capaz de
enfrentar os desafios do Capitalismo – Com frequência, escutamos
algo parecido. É claro que a afirmação comporta boa dose de razão. É, com
efeito, irrenunciável a formação política, não apenas de dirigentes, mas do
conjunto dos protagonistas, a começar de sua base, de onde devem vir, em regime
de alternância, seus coordenadores e dirigentes. O problema não reside aqui.
Sucede que, diferentemente de outras conjunturas históricas, em que a formação
estritamente política dos protagonistas deu conta, hoje enfrentamos uma
realidade nova, bem mais complexa e desafiante, a não demandar mais a mera
formação estritamente política, mas, antes, uma formação integral de sua base e
de seus dirigentes. A isto voltarei no tópico, a seguir.
2.
Que tipo de formação
se faz necessário aos protagonistas de hoje, na perspectiva acima assumida?
Não se tem conhecimento
de movimento social algum (com perfil de lidar com projeto desociabilidade
alternativa, que tenha prosperado, sem apostar a fundo no processo formativo de
seus membros. Sem qualquer demérito para a educação formal, importa ter
presente que dela aqui não se trata. Sendo o Estado o órgão responsável pela
organização, pelo controle, pela avaliação do sistema de educação escolar (da
educação infantil à pós-graduação), seria ingênuo, da parte dos movimentos
sociais com perfil acima mencionado esperar que o Estado dê conta da formação
de seus membros. Sendo o Estado um componente essencial (ao lado do Mercado)
para a realização dos interesses da classe dominante, não constitui tarefa sua
favorecer a formação das forças que buscam sua superação. Daí não haver
escapatória para os movimentos sociais populares, senão a de assumirem seu
próprio processo formativo, desde a concepção, passando pelo planejamento, a
implementação, a metodologia, a avaliação...
Importa ao processo
formativo protagonizado pelos movimentos sociais, antes de tudo, formar Gente,
diferentemente do sistema oficial, que se empenha em formar para o Mercado.
Formar Gente é bem mais complexo! Que requerimentos, então, supõe um projeto de
formação protagonizado pelos movimentos sociais populares? Vejamos alguns
deles.
Diferentemente da
educação escolar, que se dá num período determinado (5, 10, 15 anos...), uma
formação alternativa a esse sistema há que ser assumida permanentemente e de
forma incessante. Educação continuada! Formar Gente supõe assegurar condições
favoráveis aos formandos de aprimorarem sua capacidade perceptiva: ver mais e
melhor o que antes enxergavam mal ou não enxergavam; ouvir coisas novas;
sentir, intuir situações ainda não vivenciadas; exercitar um outro olhar sobre
a realidade, sobre o mundo, sobre si mesmo, sobre si mesma.
Trata-se de uma
experiência formativa que parte do reconhecimento ou da tomada de consciência
dos próprios limites e potencialidades. Parte da consciência do próprio
inacabamento, da própria finitude. Limite que vai sendo superado à medida que
se vai apostando na relacionalidade, na força comunitária. Só através da vida
grupal é que se vai tendo condição de reconhecer melhor os próprios limites, e,
ao mesmo tempo, dar passos rumo à superação de tais insuficiências. Aqui,
também, importa ter presente o caráter processual da formação. Ela vai-se dando
numa caminhada, num processo, dentro de conjunturas e, portanto, assumindo um
caráter de relatividade. Disposição sempre deve haver de chegar cada dia mais
perto do horizonte almejado, sabendo-se, porém, que não se alcança tal
horizonte, de forma completa, mas aproximativa.
No curso desse mesmo
processo formativo, aprende-se melhor a lidar com a memória histórica. Tomar
consciência de que, sendo seres históricos, portamos raízes de nossos
ancestrais, razão por que buscamos recuperar e celebrar a memória de nossa
Gente, suas lutas, suas conquistas, suas derrotas, seus saberes secularmente
acumulados, nos distintos continentes e no Brasil. Uma memória subversiva, que
nos ajuda sobremaneira a manter acesa nossa chama revolucionária, nossos
compromissos de classe, nosso empenho em ajudar a transformar o mundo, a
sociedade, a partir de nossa própria transformação, dia após dia.
Trata-se de um processo formativo que
nos dispõe a ir-nos processualmente tornado Gente, e, por isso, comprometidos
com a busca de formação omnilateral, isto é, sempre em busca de trabalhar, em
nós e nas demais pessoas e grupos, as distintas dimensões em que somos chamados
a crescer, a processar nosso desenvolvimento. Dimensões que incluem as relações
sociais de gênero, de etnia, de geração, de espacialidade. Um processo
formativo que nos dê condições de ir além da mera cognição, do mero
desenvolvimento de nossa capacidade intelectual, à medida que nos dispõe a
articular adequadamente nosso sentir, nosso pensar, nosso querer, nosso agir,
nossa postura comunicativa, nossas relações com a Mãe-Natureza, nossas relações
com o Sagrado.
3.
Como articular
esses desafios e esse tipo de formação com o Trabalho de Base, no presente
contexto da sociedade brasileira?
É supérfluo dizer que não se trata aqui
de pretender-se oferecer qualquer receita. Isto é incompatível com o que
entendemos por Educação Popular. Juntos, a partir das experiências concretas
vividas junto a movimentos sociais populares e outras organizações de base de
nossa sociedade, buscamos pistas que nos sejam úteis ao nosso propósito. Para
tanto, cuido, primeiro, de reavivar o que estou aqui a entendendo por “trabalho
de base”, e, em seguida, à luz do que antes vem sendo refletivo, ousar sugerir algumas
pistas, nesse sentido.
Por Trabalho de Base podemos, também,
entender uma dimensão inicial do processo formativo das classes populares,
focada no despertar da consciência crítico-transformadora dos protagonistas
recém-chegados e inseridos nos mais variados campos das lutas populares, no
âmbito dos movimentos sociais e sindicais ou de outras organizações de base de
nossa sociedade. Trata-se aí de assegurar condições e passos favoráveis ao
desabrochar da consciência crítica e do compromisso com a causa de emancipação da
Classe Trabalhadora, em vista do fortalecimento de sua condição de sujeito de
transformação social, na perspectiva da construção de uma sociabilidade
alternativa ao Capitalismo, em suas mais diversas esferas (social, econômica,
política, cultural...).
Obra coletiva, mas também pessoal, o
Trabalho de Base é expressão de muitos e múltiplos protagonistas, trabalhadores
e trabalhadoras do campo e da cidade, cidadãos e cidadãs procedentes de espaços
diversos, com sua diversidade de gênero, de etnia, de situação geracional (jovens,
adultos...), de variada situação de escolaridade, com suas diversas escolhas
ético-religiosas, etc., todas características relevantes a serem tomadas em
conta no processo formativo. Processo no qual trabalham, ao mesmo tempo,
formandos e formadores, trabalhando os mais diversos temas e questões da
realidade concreta, cada qual com seu aporte específico, em que todos se fazem
aprendizes uns dos outros, umas com as outras. Para tanto, o método, o jeito de
trabalhar é decisivo. Não basta que tenham em comum o mesmo horizonte a ir-se
alcançando. Importa, também, que os caminhos e a postura dos protagonistas se
façam compatíveis com o respectivo horizonte. Horizonte de Liberdade só se
alcança também por caminhos de Liberdade!
Com relação às pistas e passos a propor,
trato de distribuí-los em três sub-tópicos: os que dizem respeito aos desafios
organizativos; os que se acham mais ligados ao processo formativo mais
diretamente; e os que dizem mais diretamente respeito à intervenção massiva
(mobilização). Convém lembrar o que já foi antes assinalado, quanto às conexões
orgânicas entre os três tópicos e os três sub-tópicos destas linhas.
Quanto
às pistas e passos de caráter organizativo – Desde os primeiros contatos,
da parte de quem tome a iniciativa, é fundamental que cada passo, cada gesto
(desde a preparação dos primeiros contatos, coletivos ou pessoais, ao primeiro
encontro, etc.), se tenha o cuidado de impregná-los com as características
gerais da proposta de trabalho. Isto é, os membros encarregados, formadores ou
não, de realizar Trabalho de Base, devem expressar em cada gesto seu sinais da
totalidade da Proposta formativa. Não basta contentar-se com sublinhar o
horizonte, aonde se deseja chegar, mas também dar testemunho dos caminhos, por
minúsculos ou moleculares que sejam, compatíveis com esse horizonte. Encarnar o
Projeto Popular alternativo em cada gesto é que vai convencer, com eficácia, os
que estão chegando...
*
Partir da história de vida e da experiência concreta dos recém-chegados - Passo que nos
remete, por exemplo, à fecundidade dos freireanos Círculos de Cultura. Criar
condições favoráveis para que esses novos protagonistas digam sua palavra,
contem sua história, relatem e compartilhem suas experiências, seus saberes
prévios. Aqui o papel do Formador/da Formadora é menos de falar (até pode falar
o necessário), e bem mais o de observar, ouvir, escutar, anotar elementos-chave
do percurso e do perfil dos participantes dessa plenária ou reunião ou encontro
inicial.
Passo importante para se colher as
informações básicas sobre o perfil dos novos protagonistas. A partir dos
elementos recolhidos/anotados em uma ou tantas outras reuniões, tem-se mais
condição de se levantar o perfil individual e coletivo da turma contatada.
Perfil que vai ajudar profundamente nos desdobramentos ulteriores do Trabalho
de Base.
*No caso de vir a ser adotada o formato
de um Círculo de Cultura, nos encontros seguintes, convém, antes mesmo, de
situar os desafios mais diretos do Movimento, trabalhar temas, questões,
palavras geradoras colhidas anteriormente. Provocar debate, rodas de
intervenção por parte dos participantes. Só que aqui não basta apelar para a
fala oral. Há que se buscar outros recursos artísticos: desenhos, contação de
estória, encenação, música, poesia, cordel, repente, cartazes, trabalhos
manuais reveladores dos talentos dos participantes que, na maioria, nunca antes
haviam tido sequer a consciência de seus respectivos talentos e saberes...
*Criar
condições de desenvolvimento progressivo da capacidade perceptiva dos
participantes, no que diz respeito mais diretamente à realidade social – Só a título
de ilustração (sem pretender reeditar a experiência), nos anos 80, no contexto
da Teologia da Libertação, da chamada “Igreja na Base” (CIMI< CPT< CPO,
etc.), um material que marcou muito foi o recurso às charges, às histórias em
desenho, como os utilizados numa cartilha intitulada “Zé Brasil descobre a
sociedade”. Quem sabe, não seria o caso de recorrer, não à mesma cartilha, mas
de elaborar uma outra, com charges, a partir das histórias de vida, das
experiências concretas parilhadas, nos iniciais, nos círculos bíblicos... Em
breve, propõe-se fazer aqui um esforço inicial de análise de conjuntura em
mutirão, com a efetiva participação dos presentes.
*Envolvimento
progressivo dos participantes em atividades ao seu alcance - Já iniciado o processo
organizativo, por meio inclusive da experiência de Círculos de Cultura ou
outras iniciativas semelhantes, os protagonistas aqui envolvidos já começam a
sentir-se chamados a fazer intervenções concretas, de acordo com suas atuais possibilidades.
Já não basta o debate, sem ser seguido por ações concretas. É hora de ir
progressivamente fazendo propostas para os participantes. Tarefas que possam
ser realizadas em equipe (da qual participem pessoas mais experientes junto com
pessoas iniciantes), bem como de acordo com as características pessoais dos
participantes. Apenas o começo. Isto não significa que, em algumas ocasiões,
para determinadas tarefas, não devam ser convidadas também pessoas com talento aparentemente
pouco compatível. É a prática que vai mostrar isto mais claramente. Desde que
se faça o trabalho em equipe, o desempenho concreto de cada participante é que
vai dizer se valeu ou não valeu a pena sua participação. Resulta sempre algum
aprendizado.
*De
animador de experiências locais a animador/animadora de experiências
organizativas em outros âmbitos - Em distintas situações de avaliação,
não é raro perceber-se o enorme bem que resulta a um(a) militante inicial
circular como animador(a) de distintas experiências locais e em outras regiões.
Por razões óbvias, isto lhes confere um aprendizado mais denso, porque a partir
de uma diversidade de situações trabalhadas. Uma tarefa pode, inclusive, a de
animar a formação de conselhos populares, núcleos ativos do Movimento. Núcleos
que funcionam com sua autonomia, mas, ao mesmo tempo, sentindo-se
interconectados, não apenas com outros núcleos similares, mas também vivamente
interagindo com outras instâncias organizativas do Movimento. Uma rede viva e
vivificante de conselhos ou núcleos a interagirem e a tomarem parte efetiva nas
decisões do Movimento.
*Zelar,
desde cada núcleo ou conselho, pela sua autonomia relativa e, ao mesmo tempo, pela
sua interconexão ativa com outras instâncias do Movimento - O exercício da
autonomia relativa de um movimento não começa nas instâncias de
coordenação/direção. Surgem desde as bases do movimento, desde os núcleos. Em
verdade, são estas instâncias de base que vão assegurar a observância da
autonomia nas instâncias de coordenação/direção. O mesmo vale para a necessária
interconexão das diferentes instâncias. E esses procedimentos se materializam
igualmente por iniciativas bem concretas. Por exemplo, no caso do exercício de
autonomia – que garante a todo o Movimento não se transformar em correia de
transmissão ante forças do Mercado ou do Estado -, isto se viabiliza graças a
tantas iniciativas forjadas desde baixo, principalmente quando se trata do
autofinanciamento. Cuida-se, aqui, de empreender com criatividade e lucidez
iniciativas voltadas a arrecadar recursos próprios para a realização de suas
atividades. Exemplo que acaba repercutindo positivamente sobre outras
instâncias, e, sobretudo, influenciando práticas nessa direção. Isto se faz com
critérios objetivos. Não se trata de isolar-se de ninguém. Pode-se, sim,
conversar com quaisquer interlocutores – governos, partidos, sindicatos,
igrejas... -, mas sem nunca perder sua autonomia, sua capacidade crítica de
expressar as linhas-mestras do seu Projeto. À medida que se vai cedendo, mesmo
no pouco, vão-se abrindo brechas para aumentar o grau de concessão até perder,
de vez, a autonomia, sua identidade.
*Assegurar
condições para que aí prospere a alternância de cargos e funções - Em vão se espera
pela boa vontade de dirigentes ou coordenação para se realizar o rodízio ou
alternância de cargos e funções. Ainda que houvesse boa vontade da parte deles,
este não seria o caminho desejável. Há de se criar condições coletivas de
observância do rodízio, independentemente da boa ou má vontade dos dirigentes.
Isto se faz à medida que, desde os núcleos, exige-se que quem for eleito para
um período de coordenação/direção, tão logo se vença seu período de gestão,
volte para a base. Quão revolucionário é este princípio, quando concretamente
posto em prática.
*Quanto
às pistas/passos de caráter formativo - Em vez de pontuar uma ampla série de
passos específicos (cf., por ex., http://www.consciencia.net/educacao-popular-como-processo-humanizador-quais-protagonistas/ , cuido de
sintetizar em três pontos axiais:
+Buscar
manter aceso o horizonte de nossa caminhada – Não conseguimos ir longe –
pois logo nos perdemos pelo caminho -, se hesitarmos quanto ao rumo que somos
historicamente chamados a perseguir. A cada dia, temos que reacender esse
compromisso inarredável, de seguirmos na construção de uma nova sociedade, de
mulheres novas e de homens novos. Sociedade justa, solidária, fraterna, livre,
plural, buscando a unidade na diversidade, desde os minúsculos gestos do
dia-a-dia, sem esperar (em vão) que, primeiro, “derrubemos o sistema”, para só
cuidar disto a partir daí.
+Priorizar
o exercício da memória histórica dos “de baixo”- Ao longo da História, há
um extenso acervo de experiências a recolher dos diferentes povos, das
incessantes lutas de resistência e propositivas dos “de baixo”, a merecerem,
não apenas registro, como também tornarem-se alvo de análises e avalição para
os movimentos de hoje. E aqui não se trata de pretender-se reeditar esses
feitos, mas de recolher deles inspiração, intuição para o enfrentamento exitoso
dos desafios de hoje. Especialmente, os bons clássicos – mulheres e homens –
constituem uma fonte na qual/da qual somos instigados a beber. Não é por acaso
que o exercício da mística tem sido um momento tão precioso para os
protagonistas dos movimentos sociais e das organizações de base de nossa sociedade.
Do exercício dessa memória subversiva recolhemos força e entusiasmo para seguir
lutando em busca da construção de uma nova sociabilidade, bem como para renovar
nossos compromissos de classe.
+Alimentar
continuamente nossa práxis, indo além de uma proposta formativa estritamente
política, assumindo-se uma proposta formativa omnilateral– Mantendo firme o
compromisso de formar politicamente nossa moçada, cumpre ir além de uma
formação estritamente política. Com uma agravante: o próprio campo político
tem, não raro, sofrido reducionismo, à medida que se tem restringido apenas às
relações Sociedade – Estado, sem a devida atenção a outras relevantes formas de
manifestação da Política: as relações sociais do cotidiano! Aqui ajudaria
enormemente a priorização da recuperação do significado do Público (de
“populus”, povo, popular), pelo qual tanto se empenharam sujeitos históricos de
reconhecida referência da Classe Trabalhadora, como a Comuna de Paris. Ou seja,
temos necessidade de aprofundar nosso olhar da Política, indo além das relações
Sociedade-Estado. Mas, isto não é tudo. Se tudo passa, de algum modo, pela
dimensão política, bem sabemos que a Política concerne à dimensão cidadã do ser
humana. E, além dela, há tantas outras dimensões a serem igualmente trabalhadas:
espacialidade, ecologia, gênero, etnia, geração, subjetividade... E aqui não se
trata de se empreender uma reflexão estritamente conceitual, mas de exercitar
nas relações concretas do dia-a-dia cada uma delas e a relação delas, em seu
conjunto.
+Quanto
às iniciativas de mobilização – Uma marca indelével de todo movimento
social digno deste nome é, por certo, sua capacidade de visibilizar, perante o
conjunto da sociedade, sua capacidade de organização e traços de seu processo
formativo. As mobilizações constituem, pois, um traço determinante da
configuração de um movimento social popular, especialmente empenhado na
construção, com as demais forças parceiras e aliadas, de um projeto alternativo
de sociabilidade.
Por outro lado, já não surte efeito
aventurar-se em qualquer tipo de mobilização: mobilizar-se por mobilizar-se,
sem ter algo de impactante a apresentar ao conjunto da sociedade. Em outros
termos, a mobilização só dá seus frutos quando se consegue ressoar o acúmulo
organizativo e formativo do movimento. Daí a necessidade de trabalhar-se essa
tríplice dimensão: a organizativa, a formativa e a de mobilização.
Todo tempo é, em tese, tempo de
mobilização, entendendo que é parte constitutiva de qualquer movimento mostrar
suas bandeiras de luta, as bandeiras de lutas da Classe Trabalhadora. Mas, não
se faz mobilização exitosa, de qualquer modo. Requer-se, como se sabe, um
acúmulo de lutas prévias, passando por debates e reflexões críticas e
autocríticas, Requer-se a formação de aliança com protagonistas dos “de baixo”,
de modo a romper a correlação de forças frequentemente desfavorável.
Nesse sentido, me vem ao espírito a
fecundidade da realização, em Brasília, em agosto de 2012, do Encontro Nacional
dos Trabalhadores do Campo e dos Povos das Florestas e das Águas (cf. http://terradedireitos.org.br/en/2012/08/24/declaracao-do-encontro-nacional-unitario-dos-trabalhadores-e-trabalhadoras-e-povos-do-campo-das-aguas-e-das-florestas/ ) como
ilustração de uma mobilização bem sucedida e com intensa sensibilidade aos
reais desafios da conjuntura, mantendo-se aberto ao espírito classista, em sua
saudável diversidade.
Concluindo
essas linhas
Segue insubstituível o Trabalho de Base
para todo e qualquer movimento social popular que se disponha a caminhar fiel
aos interesses da Classe Trabalhadora, entendida esta na necessária atualização
de seu sentido, conforme os desafios presentes e a nova configuração do perfil
dos “de baixo”. Sem trabalho de base, em vão se procura mudar a sociedade, na
perspectiva da construção de uma sociabilidade alternativa.
Trabalho de base a ser realizado à luz
dos instrumentais teórico-metodológicos disponíveis na atualidade, sem abrirmos
mão da genial intuição de bons clássicos e contemporâneos cujo legado deve
fazer parte do processo formativo permanente dos protagonistas – mulheres e
homens – dos movimentos sociais do campo e da cidade, que se mantêm atentos e
empenhados na construção de uma sociabilidade alternativa ao Capitalismo e seus
aliados.
Três elementos foram sublinhados, em
nossa provocação acerca do trabalho de base: o desafio organizativo, o processo
formativo e os espaços de intervenção e mobilização. Elementos cuja eficácia
reside, sobretudo, na sua interrelação.
Num momento crucial, qual o em que
vivemos, resulta fundamental aos movimentos sociais – do campo e da cidade –
voltarem a priorizar radicalmente no investimento na formação de seus
militantes – de direção e de base. Sem tal priorização, resultará frustrada
toda tentativa exitosa de luta pela mudança do atual modo de produção, de
circulação, de consumo e de gestão, em sua relação amorosa com a Mãe-Natureza.
João Pessoa, 01 de julho de 2014.
Alder Júlio Ferreira Calado
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